Até há pouco tempo, no ordenamento jurídico brasileiro prevalecia a ordem hierárquica de critérios a serem adotados para se determinar a filiação, segundo a qual o primeiro era o biológico; o segundo, da presunção legal; e, por último, o critério da socioafetividade.
Dentro disso, torna-se necessária a definição de filiação socioafetiva, que é o reconhecimento jurídico da maternidade e/ou paternidade manifestada publicamente entre ambos, com base no vínculo afetivo, e não mais apenas o sanguíneo. Ou seja, quando um homem e/ou uma mulher têm um filho, agindo como pais em situações cotidianas que revelam cuidado, proteção, amor, carinho e educação, tipicamente paternas e/ou maternas, mesmo não sendo o pai ou mãe biológicos da criança ou adolescente.
Ressalta—se que este enorme avanço jurídico se deve à observância do princípio da afetividade; associado ao princípio da dignidade da pessoa humana; presentes no Enunciado 339 do CJF/STJ, que estabeleceu:
“A paternidade socioafetiva, calcada na vontade livre, não pode ser rompida em detrimento do melhor interesse do filho”.
Em 2016, provando mais uma vez que o Direito das Famílias vem acompanhando a constante e árdua evolução da sociedade, o Supremo Tribunal Federal foi mais longe e jogou por terra a antiga hierarquia entre a paternidade biológica e a socioafetiva!
Tal fato de extrema importância para nosso ordenamento jurídico se deu graças ao reconhecimento da importância do afeto como fator determinante para se estabelecer vínculos jurídicos no âmbito do Direito Civil em geral.
Os princípios da afetividade e da dignidade da pessoa humana possibilitaram ainda a esperada paridade entre irmãos biológicos e adotivos.
A partir daí, consolidou-se o instituto da multiparentalidade ou pluriparentalidade.
A multiparentalidade é a possibilidade da múltipla filiação, na qual um filho é reconhecido pelo pai biológico e, concomitantemente, pelo pai afetivo, podendo ter ambos os pais constando no seu registro civil.
Este fenômeno social é cada vez mais comum entre as famílias modernas, que se formam através da união de pais e mães divorciados, que resolvem constituir um segundo e terceiro núcleo familiar, formado pelo casal e seus respectivos filhos. A convivência neste mesmo ambiente familiar, muitas vezes, leva à construção de um vínculo de afeto entre ambos maior ou igual ao vínculo sanguíneo, o que é chamado de “posse de estado de filho“.
De acordo com Jacqueline Filgueiras Nogueira (Apud Souza, Carlos Magno Alves de), a posse de estado de filho é:
“relação de afeto, íntimo e duradouro, exteriorizado e com reconhecimento social, entre homem e uma criança, que se comportam e se tratam como pai e filho exercitando os direitos e assumindo as obrigações que essa relação paterno-filial determina”.
A posse do estado de filho pode ser provada por qualquer meio admitido em Direito, principalmente por documentos, a fim de demonstrar os três critérios da posse de estado de filhos citados pelo ministro Edson Fachin no julgamento do STF, a saber: o tratamento (tractatio), a reputação (reputatio) e o nome (nominatio).
Tal afinidade familiar é construída com base na solidariedade à pessoa humana do casal, aplicada no cuidado cotidiano dispensado aos filhos um do outro, o que leva à inevitável criação de elo afetivo paterno e materno. Antigamente era uma situação totalmente desconsiderada, por força da primazia e preservação das relações advindas da linhagem sanguínea, em detrimento das verdadeiras relações de amor conquistado, através de ações práticas e educativas entre padrastos e madrastas e seus enteados; tios e sobrinhos etc.
A jurisprudência já é consolidada nesse sentido:
“(…) Enteado criado como filho desde dois anos de idade. Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuas, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes. A formação da família moderna não consangüínea tem sua base na afetividade e nos princípio da dignidade da pessoa humana e da solidariedade (…)” (TJSP, Apelação n. 0006422-26.2011.8.26.0286, 1ª Câmara de Direito Privado, Itu, Rel. Des. Alcides Leopoldo e Silva Junior, j. 14.08.2012).
Injusto seria que essas relações de doação pessoal, entrega de sentimentos e dedicação fraternal permanecessem sem qualquer efeito jurídico prático.
“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” (O Pequeno Príncipe)
Por outro lado outro, infelizmente, são muito comuns relações de extrema austeridade entre consanguíneos, marcadas por condutas de violência física e emocional. Pessoas que simplesmente se odeiam e não se aceitam de maneira amistosa e muito menos afetiva no âmbito familiar.
Conforme sabiamente leciona Maria Berenice Dias:
“… hoje é notório que a formação de uma pessoa, assim como a construção de seus vínculos familiares, não se define apenas de acordo com postulados racionais e científicos, mas se constroem principalmente a partir do sentimento nutrido pelos participantes dessa relação.”
“A biologicidade passou a ser vista como uma verdade científica que não traduz a gama de sentimentos e relações que realmente forma a família. O fator que agora impera é a presença do vínculo de afeto. Quem dá amor, zela, atende as necessidades, assegura ambiente saudável, independentemente da presença de vínculo biológico, atende o preceito constitucional de assegurar a criança e ao adolescente a convivência familiar.”
Ressalta—se que a graciosa parentalidade socioafetiva somente tem seus efeitos jurídicos consagrados no âmbito do Direito, especialmente sucessório, previdenciário e alimentar, caso seja reconhecida formalmente, seja por meio judicial ou extrajudicial, e, por fim, averbada no registro civil de pessoas naturais.
Para se proceder ao reconhecimento da filiação socioafetiva em Cartório, ou seja extrajudicial, é preciso que estejam preenchidos os seguintes requisitos:
1) Requerimento firmado pelo ascendente socioafetivo, testamento ou codicilo;
2) Documento de identificação com foto do requerente;
3) Certidão de nascimento atualizada do filho;
4) Anuência pessoal do filho/a, obrigatoriamente maior de 12 anos de idade;
5) Comprovação da “posse de estado de filho“.
O Provimento 83/2019 do CNJ limitou a possibilidade de reconhecimento extrajudicial apenas em relação às pessoas maiores de 12 anos (ou seja, o filho deve ser ao menos adolescente, conforme artigo 2º do ECA).
Além disso, embora o Provimento 83/2019 reconheça a possibilidade de existência da multiparentalidade (ou seja, registro de dois pais, duas mães etc.), ele limitou o registro extrajudicial para a inclusão de apenas um ascendente socioafetivo, seja do lado paterno ou do materno, ou seja, extrajudicialmente via cartório só é possível reconhecer um Pai ou um Mãe como sociafetiva, jamais ambos.
Todavia, vale lembrar que em caso de impossibilidade de ser reconhecida a filiação socioafetiva de forma extrajudicial, pode-se sempre prosseguir com o reconhecimento pela via judicial.
De qualquer modo, mesmo em se optando pela via extrajudicial, é sempre recomendável consultar antes uma advogada especialista, pois ela esclarecerá eventuais dúvidas e saberá a melhor forma de conduzir a pretensão.
Referências bibliográficas
ABREU, Karina Azevedo Simões de. Multiparentalidade: conceito e consequências jurídicas de seu reconhecimento. Disponível em: https://karinasabreu.jusbrasil.com.br/artigos/151288139/multiparentalidade-conceito-e-consequencias-juridicas-de-seu-reconhecimento. Acessado em 31/5/2021.
DIAS, Maria Berenice. Multiparentalidade: uma realidade que a Justiça começou a admitir. Disponível em: http://www.berenicedias.com.br/artigos.php?subcat=555#anc. Acessado em: 31/5/2021.
SOUZA, Carlos Magno Alves de. CNJ cria regras para reconhecimento extrajudicial de filiação socioafetiva. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-dez-03/carlos-souza-cnj-cria-regras-reconhecer-filiacao-socioafetiva. Acessado em 31/5/2021.
TARTUCE, Flávio. O provimento 83/2019 do Conselho Nacional de Justiça e o novo tratamento do reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/309727/o-provimento-83-2019-do-conselho-nacional-de-justica-e-o-novo-tratamento-do-reconhecimento-extrajudicial-da-parentalidade-socioafetiva. Acessado em: 31/5/2021.